quinta-feira, março 27, 2008

Crônica

O caminho do tiro com o arco
(Paulo Coelho)

A importância de repetir a mesma coisa

Uma ação é um pensamento que se manifesta.

Um pequeno gesto nos denuncia, de modo que temos que aperfeiçoar tudo, pensar nos detalhes, aprender a técnica de tal maneira que ela se torne intuitiva. Intuição nada tem a ver com rotina, mas com um estado de espírito que está além da técnica.

Assim, depois de muito praticar, já não pensamos em todos os movimentos necessários: eles passam a fazer parte de nossa própria existência. Mas para isso, é preciso treinar, repetir.

E como se não bastasse, é preciso repetir e treinar.

Observe um bom ferreiro trabalhando o aço. Para o olhar destreinado, ele está repetindo as mesmas marteladas. Mas quem conhece a importância do treinamento, sabe que cada vez que ele levanta o martelo e o faz descer, a intensidade do golpe é diferente. A mão repete o mesmo gesto, mas à medida que se aproxima do ferro, ela compreende que se deve tocá-lo com mais dureza ou mais suavidade.

Observe o moinho. Para quem olha suas pás apenas uma vez, ele parece girar com a mesma velocidade, repetindo sempre o mesmo movimento. Mas aquele que conhece os moinhos sabe que eles estão condicionados ao vento, e mudam de direção sempre que isso é necessário.

A mão do ferreiro foi educada depois que ele repetiu milhares de vezes o gesto de martelar. As pás do moinho são capazes de se moverem com velocidade depois que o vento soprou muito, e fez com que suas engrenagens ficassem polidas. O arqueiro permite que muitas flechas passem longe do seu objetivo, porque sabe que só irá aprender a importância do arco, da postura, da corda, e do alvo, depois que repetir seus gestos milhares de vezes, sem medo de errar.

Até que chega o momento em que não é mais preciso pensar no que se está fazendo. A partir daí, o arqueiro passa a ser seu arco, sua flecha, e seu alvo.

Como observar o vôo da flecha

A flecha é a intenção que se projeta no espaço. Uma vez que foi disparada, já não há mais nada que o arqueiro possa fazer, a não ser acompanhar o seu percurso em direção ao alvo. A partir deste momento, a tensão necessária para o tiro já não tem mais razão para existir.

Portanto, o arqueiro mantém os olhos fixos no vôo da flecha, mas seu coração repousa, e ele sorri.

Neste momento, se treinou o bastante, se conseguiu desenvolver seu instinto, se manteve a elegância e a concentração durante todo o processo do disparo, ele sentirá a presença do universo, e verá que sua ação foi justa e merecida.

A técnica faz com que as duas mãos estejam prontas, que a respiração seja precisa, que os olhos possam fixar o alvo. O instinto faz com que o momento do disparo seja perfeito.

Quem passar por perto e ver o arqueiro de braços abertos, com os olhos acompanhando a flecha, irá achar que está parado. Mas os aliados sabem que a mente de quem fez o disparo mudou de dimensão, está agora em contato com todo o universo: ela continua trabalhando, aprendendo tudo o que aquele disparo trouxe de positivo, corrigindo os eventuais erros, aceitando suas qualidades, esperando para ver como o alvo reage ao ser atingido.

Quando o arqueiro estica a corda, pode ver o mundo inteiro dentro do seu arco. Quando acompanha o vôo da flecha, este mundo se aproxima dele, o acaricia, e faz com que tenha a sensação perfeita do dever cumprido.

Um guerreiro da luz, depois que cumpre seu dever e transforma sua intenção em gesto, não precisa temer mais nada: ele fez o que devia. Não se deixou paralisar pelo medo – mesmo que a flecha não atinja o alvo, ele terá outra oportunidade, porque não foi covarde.

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